domingo, 23 de setembro de 2012

Sensibilidade. Inteligência. Devoção. Leonardo Gonçalves




“O novo fica tão mais bonito quando emoldurado do velho; o moderno tão mais profundo quando enraigado numa tradição; a erudição tão mais elegante quando de mãos dadas com a simplicidade.” Essas são algumas percepções sensíveis de Leonardo Gonçalves belamente escritas, contidas no encarte do seu quarto e seu mais recente álbum “Princípio e Fim”. Aos 33 anos, nascido em Palmares, Pernambuco, com porte europeu e refinado repertório cultural, o cantor religioso é articulado, inteligente e dono de uma capacidade ímpar de se expressar. “Minha vida gera minha arte, minha maneira de pensar. Quanto mais me conhecerem, mais entenderão quão pessoal é tudo o que eu apresento musicalmente.”

Início do século 20. Em uma igreja qualquer, de uma comunidade formada por negros americanos cristãos, pessoas comuns se reúnem ao redor de um órgão e entoam louvores a Deus. O ato livre de expressar seus reais sentimentos ao Todo-Poderoso reinventa, mesmo que inconscientemente, a música religiosa praticada nos cultos até então. Conhecida como “gospel”, esse estilo musical popularizou-se de tal forma que ultrapassou os limites da igreja afro-americana e um século depois movimenta um mercado de milhões de dólares em todo o mundo. Em terras brasileiras, em pleno século 21, este mercado tão desfragmentado devido aos diversos estilos que abraça, possui este artista que é um representante blindado dos principais rótulos negativos que ainda envolvem o segmento. Com o álbum “Princípio e Fim”, Leonardo Gonçalves tornou-se o primeiro de sua categoria a conquistar o primeiro lugar no iTunes – e na classificação geral, deixou para trás cantores como Roberto Carlos e Adele.

O início da trajetória deste rapaz tem total ligação com o que houve há um século: a mudança de uma prática que envolve a música sim, mas antes da própria música uma atitude, uma cadeia de valores e pensamentos que, hoje, não é mais ignorada. Em maio de 2010, Leonardo Gonçalves foi um dos primeiros contratados da gravadora Sony Music, quando a empresa decidiu se abrir para o mercado gospel no Brasil. Inserido em um universo que abriga mais de 38 milhões de pessoas, segundo o Centro de Pesquisas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, o cantor está entre os nomes que renderam ao país em 2011 cerca de R$ 1,5 bilhão, segundo a Associação Brasileira dos Produtores de Discos. Inusitado, Leonardo Gonçalves tem também apresentado possibilidades de expressão artística alternativas no segmento. Exemplo é o álbum “Avinu Malkenu”, gravado todo em hebraico e lançado em 2010, feito encarado pela própria Sony Music como um divisor de águas em sua história.

Nascido em uma família atuante na Igreja Adventista do Sétimo Dia, Leonardo Gonçalves é filho de pais separados e morou parte de sua vida com a mãe, Telma, e o padrasto, Wolfgang, em países como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha. Sua complexa e profunda maneira de pensar é tão característica quanto sua habilidade vocal, que impressiona até quem não faz parte do meio evangélico como o cantor Ed Motta. Em outubro de 2010, Leonardo Gonçalves deu uma “canja” em um de seus shows. “O Ed Motta conheceu meu trabalho através do Youtube e me convidou via Twitter, publicamente. A princípio não levei muito a sério, achei que fosse mais empolgação da parte dele, mas a produção do Ed procurou minha assessoria. O próprio Ed Motta me ligou e a conversa foi muito boa, muito agradável. Ele sugeriu de cantarmos juntos a música “Isn’t She Lovely” do Stevie Wonder. Gostei da escolha, é um clássico do Stevie que ele compôs quando sua filha nasceu. É uma música que fala de Deus, inclusive, e da gratidão do próprio Stevie Wonder a Deus.”

O ano é 1994. Leonardo Gonçalves está com quinze anos e estudando em regime de internato – costume comum e até desejado entre os jovens adventistas – no, então, Instituto Adventista de São Paulo (IASP), localizado em Campinas, interior de São Paulo. O adolescente entra para o Coral Jovem do IASP e para o conjunto vocal Tom de Vida, momento em que começa a chamar a atenção dos já consagrados músicos religiosos e do público adventista. Aqui, vale mencionar que a música adventista entre os cristãos é uma das músicas mais respeitadas por sua qualidade vocal, de produção e orquestração. A técnica vocal chamada “melisma”, que nada mais é que variar as notas musicais em uma única sílaba cantada, foi como um vírus propagado por Leonardo Gonçalves e outro cantor chamado Sergio Saas, também expoente da música gospel contemporânea. Como uma febre, jovens cristãos do final dos anos 1990 e de toda a década seguinte foram capturados e hipnotizados pelo estilo tão próprio do “negro spiritual”.

O primeiro álbum solo de sua carreira, intitulado “Poemas e Canções” teve um estrondoso sucesso, principalmente pela canção, “Getsêmani", cuja versão mais vista no Youtube apresenta imagens do filme “Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, e já foi vista por mais de 1,5 milhão de pessoas. “Poemas e Canções” vendeu mais de 85 mil cópias. Este número significativo, ainda mais em tempos de pirataria e downloads, revela a missão deste cantor, ou como se costuma falar no meio, o ministério desse cantor que não possui interesses financeiros maiores que o de anunciar suas crenças e seus valores. Algo difícil de colocar em palavras e de acreditar piamente, principalmente em uma época em que os programas televisivos religiosos e as práticas religiosas em geral levantam dúvidas quanto sua sinceridade pelos tantos cifrões que geram. 

Casado com Daniela Araújo, também cantora religiosa, a sincronia é perfeita, tanto de ideais como de conhecimento musical. Parte fundamental da fase mais amadurecida do cantor, que se revela principalmente neste último disco, Daniela Araújo é quem tem pegado Leonardo Gonçalves pelas mãos e puxado rumo a experimentações diferentes não só na música como na maneira de se relacionar com o seu público. No Facebook, o cantor possui mais de 65 mil “likes” e no Twitter mais de 42 mil seguidores.

Um rapaz que morou em três países, fala quatro idiomas e é formado em Letras pela Unicamp já é, mesmo se for um típico acomodado e uma espécie de esponja do que acontece ao redor, uma pessoa de medianas vivências culturais. Entretanto, não é o seu caso. Suas influências são variadíssimas. “Um livro que mudou a minha vida, no sentido de sintetizar minhas influências musicais, foi o de Igor Stravinsky “Poética Musical”, que nada mais é que uma série de aulas que ele ministrou em Harvard. Definir-me musicalmente é muito difícil porque ouço de tudo, de instrumentos barrocos renascentistas, viola da gama, à música contemporânea como Emicida, que acho muito interessante. Minha banda predileta, por exemplo, é Radiohead.” 

Em um meio que tem como característica no Brasil certa alienação, tanto comportamental como de conhecimento intelectual, Leonardo Gonçalves sai na frente, mesmo que isso não seja para ele uma vantagem competitiva, pois seu trabalho não é apresentado por ele como um produto que disputa um lugar por seu valor mercadológico. Respeitado pelo trabalho de qualidade em arranjos, produção, vocais e até em textos literários, “Princípio e Fim” é a prova mais recente que revela engenhosamente sua estética. O disco conta com a participação das cordas da Orquestra Filarmônica de Praga e Orquestra Sinfônica da Republica Tcheca. O videoclipe da primeira música de trabalho do disco chamada “Novo” foi gravado em Londres e Berlim. O conceito deste trabalho foi claramente definido, embora não seja algo simples de entender, muito menos possível de se resumir. “Nem sempre uma das premissas do mundo ocidental se prova verdadeira; os opostos, os paradoxos e o que é fundamentalmente diferente nem sempre precisa estar separado ou distante um do outro. Aliás, não é difícil perceber que algumas das coisas mais belas deste planeta frequentemente são fruto de combinações improváveis e/ou inesperada. É somente quando sol e chuva se fundem que temos o arco-íris; a lua cheia, quando vista de dia, parece ainda mais bonita, quase transparente contra um céu azul; e o que dizer das fontes de água quente que na Islândia jorram em meio a um deserto de gelo...”, divaga o cantor.

Sobre o autor de sua fé, Deus, Leonardo Gonçalves o entende como o amor ou o ato de amar. “Se Deus é Amor, Ele faz morada em mim quando amo; e quanto mais amo, mais Ele habita em mim”. Sua capacidade de conhecer tão profundamente todas as coisas não o torna arrogante ou impossibilitado de conversar com qualquer pessoa, ao contrário. Leonardo Gonçalves revela claramente em atitudes o profundo respeito que tem pelas pessoas, principalmente colegas de trabalho. Sua participação neste ministério que tem o intuito de tornar a vida do ser humano menos opressora, por meio da adoração a Deus, revela uma percepção importante em época como a atual, que questiona religião, dogmas e modelos de conduta e em contrapartida deixa o homem completamente desbussolado. “Exigir que fizéssemos algo que Lhe pudesse acrescentar alguma coisa seria esmagador. Impedir-nos de retribuir tudo o que recebemos e somos por Sua causa igualmente um castigo. Por isto, Ele nos pede que façamos pelo próximo o que gostaríamos de fazer por Ele. Por aqueles que não possuem perspectiva e expectativa. Por aqueles que não compartilham sequer de nossas perguntas, quem dirá de nossas respostas”.

Para os ateus ou agnósticos, Leonardo Gonçalves é, no mínimo, aquela agradabilíssima companhia com quem se pode passar horas a fio falando sobre qualquer assunto. Para os músicos e apreciadores de música que não ouvem gospel, ele é um desafio. Aceite e tire suas próprias conclusões.